quarta-feira, 1 de março de 2017

Eucaliptos, Reformas e florestas de equívocos


26-02-2017 por João Camargo

"Quando a terra deixa de fumegar e as cinzas dos incêndios de verão amansam, o debate acerca das florestas normalmente deixa de estar presente na sociedade portuguesa. Não foi assim desta vez"


Quando a terra deixa de fumegar e as cinzas dos incêndios de verão amansam, o debate acerca das florestas normalmente deixa de estar presente na sociedade portuguesa. Não foi assim desta vez. O ministério da Agricultura anunciou uma "reforma florestal" e a brigada do eucalipto cedo pôs mãos à obra. No fim, pouca gente concorda com aquilo a que Capoulas Santos chama de "reforma sem equívocos". Resta saber se os pressupostos da reforma estão equivocados, se os críticos criticam equivocadamente ou se a própria reforma é um equívoco,.
A minha resposta às três perguntas é sim: a reforma é um equívoco, os pressupostos da mesma estão equivocados e os críticos criticam equivocadamente, quer por má-interpretação, quer por má-fé.
Recebi recentemente documentos acerca de um caso que é uma espécie de corolário da razão pela qual a ideia de reforma foi posta em cima da mesa: a total desregulação garantida pela lei dos eucaliptos, DL 109/2013. Nas Caldas da Rainha, uma pequena proprietária de um pomar de meio hectare recebeu em 2015 a notícia de que no terreno contíguo ao seu, também uma pequena área de 0,85ha, seriam plantados 0,64 hectares de eucalipto. O projecto, abaixo de uma área de 2 hectares, recebeu deferimento tácito. Deu entrada no ICNF – Instituto da Conservação da Natureza e Florestas, e tinha como objectivo arborizar para reconverter e rentabilizar o terreno a partir da produção de material lenhoso para celulose. A pequena área confinava com espaços agrícolas, zonas de matos e florestas, e continha sobreiros, que segundo o projecto (e a lei), seriam preservados. Os eucaliptos seriam plantados num compasso de 3m por 1,7m. Segundo uma lei, não revogada, de 1927 (DL 13658, de 20 de Maio), as plantações de eucaliptos têm de ter uma faixa de 20 m de distância de terras cultivadas.
A pequena proprietária viu os eucaliptos serem plantados a 1m do seu pomar e viu os sobreiros serem cortados para lenha. Hoje, os eucaliptos plantados num compasso de 1,5m x 2,2m, têm 3m de altura e em breve cobrirão o sol das macieiras do seu pomar. Entretanto, e porque pretende continuar a ter um pomar, apresentou queixa à GNR (Serviço de Protecção da Natureza e do Ambiente), se seguida ao ICNF, chegando ao Ministro da Agricultura, que remeteu para o Secretário de Estado das Florestas que, por sua vez, a remeteu de volta ao ICNF. Inspecção no terreno? Não existiu. Acção para repor a legalidade? Nada.
A lei dos eucaliptos (DL 96/2013) de Assunção Cristas e Francisco Gomes da Silva funciona perfeitamente. Ela não requeria apenas a liberalização da plantação de eucaliptos nas pequenas propriedades (áreas inferiores a 2 hectares) como a total incapacidade das autoridades, nomeadamente o ICNF, para fiscalizar o que quer que fosse (inclusivamente para accionar um mecanismo dessa lei, o artigo 13º, de reposição da situação anterior). O pomar desta pequena proprietária é só um de milhares por todo o país afectado por esta lei de encomenda. Acrescem estufas, outras áreas agrícolas, áreas protegidas, áreas florestais públicas e privadas.
O primeiro equívoco é o nome: "reforma" foi a expressão que Capoulas Santos inventou para evitar dizer que faz parte do programa de governo revogar a lei dos eucaliptos. O Partido Socialista nunca foi um oponente à eucaliptização do país e hoje continua a não sê-lo. Mas o acordo de governo com o Partido Ecologista "Os Verdes" impôs a revogação. A mais que tímida formulação recentemente apresentada pelo ministro, de que se basearia na Estratégia Florestal Nacional do governo anterior para congelar a área de eucaliptal nos valores de 2010 (812 mil hectares de eucaliptal) demonstra bem quão pouco convicta é a posição do Partido Socialista. A "reforma florestal" de Capoulas Santos, que inclui outros pontos como a criação de um sistema de banco de terras para as propriedades abandonadas, um regime de apoios fiscais à criação de empresas e cooperativas para gerir áreas florestais, nomeadamente as abandonadas, e a atribuição aos municípios de competências para autorizar acções de arborização e rearborização, é um desvio importante do programa e um importante equívoco no que diz respeito aos principais problemas da floresta: abandono, monocultura, incêndio, desflorestação. Perante a impotência do Estado, reforça-se a impotência.
Naturalmente os defensores do eucalipto, desde a indústria à academia, passando por antigos governantes com responsabilidades no sector, têm uma posição crítica em relação à ideia (por tímida que seja) do governo congelar a área de eucaliptal. Nunca seria congelada nos 812 mil hectares de 2010, já que esse valor está ultrapassado há muito e provavelmente a área de eucaliptal já estará próxima dos 900 mil hectares (apesar da perda de 150 mil hectares de floresta nos últimos 15 anos em Portugal). Os seus argumentos variam pouco e são os mesmos há décadas: a área florestal actual é a  melhor possível e não seria possível outra. Os Doutores Pangloss da floresta não concebem uma floresta que não seja o monopólio das empresas da celulose, o Estado é um mau gestor (sempre curioso vindo de quem já geriu as áreas florestais a partir do Estado), os incêndios têm a ver com o abandono mas o abandono não tem nada a ver com o maior monopólio e com a espécie mais plantada no país. Os fogos não poderiam ser prevenidos de maneira que prejudicasse o monopólio, por isso que ardam os eucaliptos e o resto das espécies também. Chega-se a dizer que as florestas ardem por não serem competitivas, que a floresta não é um bem público, mas uma questão económica.  E a área florestal cai, os incêndios agravam-se e até os tais magros rendimentos aos produtores caem. Mas vivem na melhor monocultura possível, porque pensar uma floresta que não seja monocultura e que não seja monopólio é inadmissível. Outro equívoco: achar que a monocultura de uma espécie é uma floresta.
Desligada de uma estratégia de desenvolvimento rural e de defesa do território contra as alterações climáticas, a floresta de equívocos continuará a ser contenda política sem conclusão, com áreas florestais cada vez mais pequenas e degradadas. Em toda a reforma não há nenhuma referência a uma subida marcadíssima de temperatura e a um decréscimo importante de precipitação. A destruição do Instituto da Conservação da Natureza e Biodiversidade, fundido com a Autoridade Florestal Nacional por Assunção Cristas no anterior governo, garantiu que a conservação da natureza e da biodiversidade nas áreas florestais não é hoje mais do que uma nota de rodapé colocada no capítulo da "Responsabilidade Social" das celuloses. O governo português entretanto subsidia a indústria com milhões de euros para continuar, além do eucaliptização, a despejar resíduos cuja toxicidade transforma rios como o Tejo em fossas sépticas. A própria imprensa, como o Jornal de Negócios, organiza cocktails de industriais da pasta de papel para estes se louvarem a si mesmos e ao seu próprio produto, assumindo, valha isso, que "a indústria não quer ter floresta".
Há quem descubra com espanto que a limitação da plantação de eucaliptos é um condicionante aos lucros da indústria da celulose. Há quem não perceba ou finja não perceber que a degradação nas áreas florestais associada à plantação do eucalipto só dá dinheiro ao monopólio celulose, e que só por isso é que era incentivada, e mesmo hoje continua, com obstáculos menores.
À "reforma florestal" falta a coragem política para assumir a regressão da monocultura e do monopólio do eucalipto e da celulose, que se impôs no país não por condições naturais, mas por investimentos estratégicos na política e na formação, na empresarialização do ensino, que produz mais operários acríticos do que observadores sérios. O lobby surfa por entre ciclos políticos, oscilando entre a ignorância e o favor. Milhares de almoços, jantares, reuniões, formações, projectos-piloto e investimentos garantem a conformação a uma ideologia de degradação ambiental como algo inultrapassável e até, em alguns casos, desejável.

A área florestal nacional precisa de acabar com equívocos. Perde-se-ão todas as oportunidades sempre que se achar que é possível defender a floresta sem cortar no monopólio dos eucaliptos e nos lucros da Navigator Company e do Grupo Altri.

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